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27 de janeiro de 2023O cérebro musical
22 de abril de 2024Trajetória de Orlando Bueno
A trajetória de um notável neurocientista brasileiro, Orlando Francisco Amodeo Bueno
Monica C. Miranda
Sabine Pompéia
Nos últimos dois anos as ciências cognitivas no Brasil perderam grandes nomes, incluindo Orlando F. A. Bueno e Leticia Mansur, em 2019, Elisaldo Carlini em 2020 e, há pouco, Ivan Izquierdo. Prestamos aqui mais uma homenagem ao Professor Orlando Bueno ao contar um pouco sobre sua trajetória acadêmica e a influência que teve sobre o desenvolvimento de pesquisas em cognição nesse país, sem falar sobre o positivo impacto pessoal a um incontestável número de alunos e pesquisadores. Buscamos também dar ao leitor uma ideia do que era conviver com esse ser humano inigualável.
O Prof. Orlando graduou-se em Psicologia em 1969 pela Universidade de São Paulo (USP). Fez sempre questão de dizer que antes disso estudou em escola pública de uma cidade do interior de São Paulo, Cajuru (a “grande Cajuru City” como ele costumava brincar). Durante a graduação interessou-se pelo cérebro, “apesar de meu espírito pouco prático” dizia ele, rindo. Em 1967, integrou a equipe de estagiários de outro ilustre neurocientista brasileiro, o Prof. Elisaldo Carlini, falecido em 2020, que à época atuava na Santa Casa de Misericórdia com estudos em Psicofarmacologia. Continuou sua formação sob orientação desse Professor durante o mestrado, na USP, e doutorado na Escola Paulista de Medicina onde, em 1975, passou a integrar o corpo docente do Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina-Universidade Federal de São Paulo, dando continuidade a pesquisas em modelos animais. Esses estudos exploraram preponderantemente efeitos de substâncias psicotrópicas e psicoativas sobre o comportamento, notadamente derivados de Cannabis, bem como a neurobiologia da memória e exploração de paradigmas de aprendizado cognitivo em animais. Teve também uma passagem, durante sua formação, pelo laboratório do eminente Prof. James McGaugh nos Estados Unidos da América.
Em ocasião de sua morte, notas de pesar foram emitidas por organizações como a Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (http://blog.sbnec.org.br/2019/12/partida-de-um-grande-mentor-e-um-pilar-da-psicobiologia-no-brasil/#comments), muito embora sua paixão fosse a Neuropsicologia, área à qual dedicou grande parte de sua vida acadêmica.
A Neuropsicologia entra na trajetória acadêmica do Prof. Orlando no início da década de 90, quando ele aceitou o desafio de orientar três alunas advindas de estágios de aprimoramento profissional realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP sob supervisão de duas psicólogas, grandes nomes da neuropsicologia brasileira, Beatriz H. Lefévre e Cândida H. Pires de Camargo. Mal sabia ele que estava abrindo uma larga porta para a transformação de uma área ainda nascente no Brasil. Com efeito, o Prof. Orlando orientou nessa área mais de uma centena de alunos de graduação e pós-graduação, tendo efetivamente construído uma árvore genealógica de pesquisadores brasileiros em neuropsicologia de ancestral quase único. Seus ex-alunos hoje integram quase que todos os Departamentos e Programas de Pós-Graduação que incluem estudos sobre cognição humana, Brasil afora.
Este não é o único motivo para a incontestável afirmação de que a neuropsicologia brasileira não estaria em seu estágio atual de desenvolvimento sem a contribuição do Prof. Orlando Bueno. Vamos a alguns destaques. Em 1998, ou seja, ainda no início dos trabalhos com neuropsicologia, o Prof. Orlando aceita o desafio orientar/supervisionar os trabalhos do REAB, o primeiro serviço no país de reabilitação neuropsicológica cognitiva para adultos com lesões cerebrais adquiridas, uma entidade sem fins lucrativos. A repercussão e disseminação desse conhecimento foi talque logo foram agregadosao REAB o Serviço de Atendimento e Reabilitação ao Idoso (SARI), em 2000, e o Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil (NANI), em 2003. Dois anos mais tarde, esses três serviços passam a constituir o Centro Paulista de Neuropsicologia, cuja missão era e ainda é investigar as disfunções cognitivas e comportamentais decorrentes de condições neurológicas específicas, desenvolver modelos de atendimento interdisciplinar em abordagem neuropsicológica, bem como multiplicar e disseminar esses modelos. Desde sua criação, o benefício desse serviço à comunidade foi incomensurável. Milhares de pacientes e suas famílias foram atendidos, e centenas de profissionais e alunos foram formados. Esses modelos de atendimento e reabilitação foram publicados em periódicos científicos e em livros, disseminando, assim, um conhecimento importante para a implementação dessas práticas em diversas regiões do Brasil.
Não foi menor sua contribuição na área da avaliação neuropsicológica. Estudos de autoria do Prof. Orlando trouxeram um avanço significativo em termos do desenvolvimento de testes e escalas brasileiros, bem como a ampliação dos processos de normatização e validação para uso local de instrumentos internacionais, possibilitando ampliar o diálogo com centros de pesquisa e de intervenção neuropsicológica em diferentes países. Este é um desafio de grandes proporções, uma vez que o Brasil é caracterizado por sua diversidade cultural e econômica, implicando na necessidade de envolvimento e coordenação de um número significativo de pesquisadores de diversos Estados brasileiros.
Vale destacar, embora a lista seja longa, a quantidade de instrumentos adaptados para uso no Brasil que possibilitaram a realização de pesquisa e diagnóstico que foram desenvolvidos com contribuição do Prof. Orlando. Dentre eles constam: O Conners’ Continuos Perfomance Test (CCPT) e sua versão para pré-escolares (K-CPT); o Wisconsin Card Sorting Test Computadorizado; o Behavior Rating Inventory of Executive Function (BRIEF); a bateria Behavioral Assessment of Dysexecutive Syndrome (BADS); o Developmental Neuropsychological Assessment (NEPSY) e o NEUPSILIN Infantil; o teste de repetição de pseudopalavrras, o Working Memory Rating Scale e o Reading Decision Test; a escala de comportamento impulsivo UPPS e questionário de queixas de memória prospectiva e retrospectiva (PRMQ); o Pay Attention, um dentre vários programa de treinamento dos processos da atenção e programas de reabilitação cognitiva; o desenvolvimento de versões alternativas do subteste Memória Lógica do Wechsler Memory Scale; normas brasileiras de um conjunto de 400 figuras monocromáticas, figuras incompletas e completação de tríades para avaliar pré-ativação, bem como fotografias com conteúdo emocional (International Affective Picture System, IAPS).
Sua lista de publicações em revistas cientificas nacionais e internacionais, com colaboradores de diversos países, é muitíssimo considerável, contando com centenas de artigos publicados. É difícil também encontrar sequer um livro na área nas últimas três décadas que não tenha tido contribuição direta ou indireta do Professor. Dentre colaboradores estrangeiros constam James McGaugh, Allan Baddeley e PascaleEngel. Dentro os nacionais, os notórios Professores de sua geração Letícia Mansur eIvan Izquierdo, Ricardo Nitrini, Paulo Bertolucci, e tantos outros.
O reconhecimento de sua trajetória brilhante foi feito em vida por meio de inúmeros convites para ser pesquisador sênior em diversos projetos, para integrar institutos de pesquisa, como convidado ilustre em várias universidades e em homenagens prestadas em eventos científicos: em 2006 no Congresso de Reabilitação da SBNp; em 2012 na III Reunião Anual do IBNEC; em 2018 no Congresso Aprender Criança com o prêmio“ Neurocientista de Ouro” e, em 2019, “Prêmio de Excelência Discente em Neurociência da UFABC; edição 2019: Prêmio Prof. Dr. Orlando Francisco Amodeo Bueno”. Nos últimos anos, após a aposentadoria de seu cargo na Universidade Federal de São Paulo, estava locado na Universidade Federal do ABC como Professor Visitante. Foi também um dos professores que auxiliou na formação do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte durante os anos ‘80.
Atuou também em pesquisas de investigação básica em seres humanos para explorar os processos básicos de memória e atenção e fatores que neles interferem, como estudos na área de psicofarmacologia, exercício físico, e com listas de palavras. De fato, o Prof. Orlando tinha um enorme fraco por listas de palavras.
Por que “a vida não cabe no Lattes”, destacamos também a encantadora personalidade do Prof. Orlando, o Orladinho, Orlandão, OFA, Ofinha, também conhedido como Mestre dos Magos. Um apaixonado pelas causas sociais e políticas já desde o início da graduação (1962), passou sua vida discutindo política de forma sempre fervorosa e contrária a posições de estrema direita. Mesmo em seus últimos anos, já bastante debilitado devido a sua frágil saúde, fez questão de estar presente nas ruas para protestar por causas nas quais acreditava. Essa forma de ver o mundo influenciou suas escolhas acadêmicas. Fez sempre questão, de se dedicara trabalho filantrópico em avaliação neuropsicológica gratuita.
A forma usada pelo Prof. Orlando para orientar seus alunos sempre foi algo inspiradora e difícil de replicar. Ao adentrar sua sala, mal se via ele, aparente apenas atrás de pilhas de papeis e livros espalhados pelo chão, cadeiras, mesa. Uma única pergunta dos alunos na entrada resultava em dez perguntas ao final das reuniões. Essa era a forma do Prof. Orlando ensinar. Suas aulas também eram assim, baseadas em discussões de longos textos, sem retro transparências, slides, depois também sem PowerPoint…“ Pois é, com Orlando você tinha que pensar, refletir… a coisa era profunda……” (texto por Weber, http://blog.sbnec.org.br/2019/12/partida-de-um-grande-mentor-e-um-pilar-da-psicobiologia-no-brasil/#comments). Discussões, bastante filosofia e piadas marcaram todos com quem conviveu. Destacam-se seu jeito bonvivant e sua enorme generosidade. Aceitou todos os alunos que o procuravam como orientador. Para ele, bastava que tivessem vontade de aprender, independentemente de suas origens e qualificações.
Não importa o tempo. Sua contribuição científica ao desenvolvimento das ciências cognitivas no Brasil marcará todos os que vieram e virão depois dele. E todos que tiveram o privilégio de conviver e trabalhar com o Prof. Orlando guardarão memórias episódicas, todas elas acompanhadas de “conteúdo afetivo positivo”. Seu legado é mais do que a ciência nos permite vislumbrar, pois todos estão sentindo a falta do seu riso, das suas piadas, do seu abraço fraterno e carinhoso, da sua presença sempre marcante por onde passou.